Por André Furtado | Fotos: Lucas Guimarães
A história real de quem foi escolhido pela arte
Imagine o seguinte cenário: uma casa numa rua calma. Durante o dia você escuta os sinos da igreja matriz, a melodia dos pássaros e o som dos barcos deslizando nas águas de um rio. No início da manhã, sua varanda é moldura para o raiar do sol e, à noite, ela se transforma à espera da lua. Poderia ser uma boa locação para um filme, daqueles que assistimos no fim de um sábado. Contudo, este cenário é real e Odivan Baia o encontra todos os dias ao chegar na sala de sua casa – que também é seu ateliê. Natural de Cametá, ele encontrou na arte o refúgio e suas pinturas são tão bem elaboradas que chegam a ser confundidas com fotografias.
Artista visual, Odivan abriu as portas de seu ateliê e me recebeu numa tarde ensolarada de julho. No local, os quadros ornamentavam as paredes; tintas, pincéis e um tablet estavam sob uma mesa branca retângular; e próximo à janela, tendo a varanda ao fundo, um cavalete com uma tela. Nela, o rosto de um homem finalizado em tinta acrílica e o corpo ainda com rabiscos em lápis. Era mais uma obra que ganhava forma.

Vestindo uma camisa verde e uma bermuda preta – com marcas de aquarela, Odivan estava descalço e me serviu um café e um copo d’água. Sentei numa cadeira de plástico e ele em uma de praia, encostada na parede. Estávamos um de frente para o outro, no mesmo plano e na mesma altura. O ambiente foi tão acolhedor que por um momento esqueci que estava a trabalho, parecia um encontro entre amigos, talvez por sermos conterrâneos. O Cametaense tem disso: ainda que nunca tenham trocado sequer uma palavra, se conhecem de vista – neste caso, das redes sociais.
Odivan tem 26 anos e está em contato com o mundo da arte desde criança, sua família é composta por artistas. E foi observando o trabalho do pai, com barcos, que ele começou a engatinhar pelo mundo das aquarelas. “Meu pai iniciou com pintura de letreiros de barcos, ele tinha uma variedade muito grande de desenhos que ia aperfeiçoando. Depois, [meu pai] foi para marcenaria e carpintaria. Hoje, ele trabalha de forma bem livre fazendo barcos de miriti [uma palmeira característica da Amazônia]. Sempre deixou tudo muito bem feito. Nunca sentou para me ensinar [a pintar], eu peguei por osmose”, conta com riso descontraído.
Quando a arte escolhe um filho, não tem jeito! Um cavalete, uma tela em branco, um emaranhado de tintas, alguns pincéis e os primeiros passos já começam a ser dados. Mas, para que a caminhada seja firme, uma combinação é fundamental: a do incentivo com uma boa dose de persistência! “Toda criança é artista. Ela sempre desenha e pinta, só que poucas pessoas levam isso para a vida, entende? Eu optei por levar e acredito que vem muito deles [da minha família]. Em casa sempre foi um ateliê imenso, então a gente estava o tempo todo criando. Eu nunca paro de produzir por conta disso, dessa matéria prima que carrego desde o berço”, ressalta.
Odivan começou a trabalhar profissionalmente com pinturas em 2018 e fez da pandemia de Covid uma escola artística com tempo integral: estudou, pintou e se aperfeiçoou – tudo por conta própria. Ele iniciou com lápis e papel que entre uma linha e outra formavam desenhos. Pintava com lápis de cor e carvão. Gostava do papel, não de telas. Mas num mundo em que novas experiências são sempre bem-vindas, resolveu testar tinta acrílica sobre tela. Guardou o registro, passou a pintar sobre telas e é delas que, hoje, vive financeiramente.
“Eu sempre gostei muito de artes relacionadas à ancestralidade, a arte indígena; mas eu tentava fugir o tempo todo. É igual o brega, antes, poucas pessoas gostavam. Mas com o passar do tempo a gente vai amadurecendo e entendendo o significado e a importância das coisas e o quanto isso te pertence e te causa orgulho. Por exemplo, eu gostava muito de pintar figuras indígenas, mas não sentia orgulho, tipo ‘ah, eu quero fazer isso, gosto de pintar isso’. Hoje é diferente, eu gosto bastante!”, durante a fala, Odivan que estava sentado em minha frente, olhou por cima de meus ombros o rio Tocantins. Parecia refletir sobre um cenário comum a nós nortistas: o de romper, diariamente, com os ideais coloniais e sentir orgulho de ser amazônida!
Entre suas obras expostas no ateliê, há uma que traz a figura de uma mulher indígena. Ela está na parede em que a cadeira de Odivan recosta, de maneira que consigo vê-la com riqueza de detalhes. A representação é tão real, que pairou em mim a certeza de ser Marcielle, personagem do filme Manas (2025), dirigido por Marianna Brennand. Quando perguntei quem era a moça, a resposta me surpreendeu: “É uma criação minha e é muito engraçado porque todo mundo que já veio aqui em casa e vê essa pintura, se reconhece. Uma moça disse que parecia a irmã dela, outra a comparou com uma cabocla. Mas assim, eu só desenho, vou pintando, aí me vêm algumas ideias e eu vou montando, vou tirando… às vezes chego até a descartar algumas criações, mas sempre fica alguma coisa assim”, explica movimentando o pescoço para olhar o quadro.

As telas de Odivan retratam memórias e afetividade, ele pinta o que seus olhos e a câmera de seu celular captam. “Eu gosto muito de fazer retratos de pessoas, de pintar carros, de pintar vegetação também. Mas nem sempre foi assim, eu trazia culturas que não eram as minhas, entende? Eu sempre tentava buscar referências de outros lugares para as minhas artes. Por exemplo, eu gosto muito de grafitti, mas não era exatamente algo que vinha do lugar onde eu morava. Sempre quis muito levar gênero, sexualidade e cultura suburbana”, enfatiza olhando em meus olhos.
O processo de criação, para além de tempo, demanda vivência, experiência e, principalmente, estudo. Odivan faz tudo isso por conta própria: “depois que eu entendi que queria fazer arte com pessoas daqui, com coisas daqui, eu tentei visitar e ter um pouco de vivência sobre alguns eventos regionais. Por exemplo, esse ano eu tentei participar do Carnaval das Águas, fui fotografar e pegar alguma matéria-prima para, futuramente, produzir algo. E eu não consegui. Foi quando entendi que é preciso estudar e não sair achando algo e replicando em pintura, em realismo, porque é bem diferente”.
Odivan venceu, em 2023, o Prêmio Novos Contemporâneos, da Fundação Cultural do Pará, e viu sua obra ‘Passabilidade’ – que mostra um homem negro com dreds e uma aureola dourada, que me remete Jesus Cristo -, ganhar espaço no salão da Galeria de Artes Benedito Nunes, em Belém. “Foi algo bem legal, porque eu sempre quis expor em uma galeria e isso expandiu muito a minha ideia sobre a arte, sobre comércio, sobre expor, sobre pessoas que gostam e que não gostam de arte. Eu conheci artistas de diversos lugares e é muito legal ter esse contato com pessoas que, muitas vezes, a ligação se faz só por rede social”, fala entusiasmado.

Foto: Acervo pessoal.
No que diz respeito ao futuro, Odivan não o aguarda com ansiedade e não tem medo de dizer que é incerto. Com os pés firmes no presente, ele se coloca como aprendiz: “não tenho nada concreto que eu possa te falar. Eu migrei há um tempinho do desenho no papel para pinturas em larga escala, em quadros maiores e mais elaborados. Então, é uma construção que eu ainda tenho que ver e rever, mas eu gosto muito de trabalhar e produzir. Eu trabalho o tempo todo, todos os dias, nem que seja por alguns minutos. Uma coisa que eu espero é não desanimar, porque fazer arte no Brasil é ruim e eu moro na favela do Brasil”, reflete, ajustando a postura na cadeira, como quem sente um incômodo na lombar.
Odivan não é uma pessoa muito nostálgica, mas quando perguntei sobre sua família, ele retornou ao lugar em que passou a parte de sua infância, o Parurú, uma ilha que fica a 40 minutos de barco, partindo de Cametá. Os olhos marejados entregaram muitos sentimentos, entre os quais estavam o orgulho e a gratidão ao incentivo dado pelos pais: “meu pai é artista e minha mãe é professora. É a junção perfeita! Eles sempre ajudaram muito eu e meus irmãos a não desistir, nos deram liberdade para ser o que quiséssemos, mostrando que fazer arte é muito bonito. E eu levo isso para a vida… Eu levei muito tempo para entender porque eu gostava de fazer arte, depois eu compreendi, que era por conta do meu pai”, finaliza sorridente, o artista.
Durante os trinta minutos que estive entrevistando Odivan, o som dos barcos deslizando pelo rio Tocantins nos fizeram companhia; os pássaros entoaram alguns cantos e o relógio da Catedral de São João anunciaram a chegada das 16h de uma segunda-feira. Apesar do calor, característico do verão amazônico, o momento era agradável. Uma contradição também presente nas artes, pois em meio a beleza e esplendor mora a insegurança: quantos editais estão disponíveis para a arte e cultura? Quem tem acesso a eles? Quais artistas ganham espaços em galerias? Quantos são da região norte? E destes, quantos moram no interior do Pará? Cametá, por exemplo, não possui nenhuma galeria de artes e algumas obras de Odivan estão no ateliê, na sala de sua casa – e ele é só um dos tantos artistas que se encontram no anonimato. Escrevendo o texto compreendi melhor a insegurança por ele me confessada, afinal, não basta somente o incentivo familiar, é necessário que também venha de políticas públicas!
Texto e produção: André Furtado
Edição: Douglas Borges
Revisão: Evelyn Ludovina


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