Cenário de animação paraense: Um gênero em transformação

8–12 minutos

Chegar em casa depois da escola, almoçar e pedir para assistir um filme. O gênero? Animação. Seja O Rei Leão, Procurando Nemo, Toy Story, Shrek ou A Viagem de Chihiro. O gênero faz parte da infância e vida adulta de muitas pessoas. As animações ganharam o mundo com estúdios como Disney, Pixar, DreamWorks e Studio Ghibli. É impossível ler esses nomes e não lembrar de uma produção. Mas, como produções de outros lugares se encaixam no cenário de animação?

Em 2025, o filme Flow ganhou o Oscar na categoria Melhor Filme de Animação. Flow é um filme sem diálogos. A história é contada apenas através de sons de animais e da expressão corporal dos personagens. A trama, que segue a jornada de um gato, foca na cooperação entre as espécies para a sobrevivência, o que ressoa com o público de forma universal, independentemente da barreira da língua.

O filme é uma produção independente da Letônia, e concorreu contra filmes de estúdios de Hollywood que dominam a categoria por anos. A película foi feita com baixo orçamento e utilizando o Blender, um software de animação 3D de código aberto e gratuito. Isso demonstrou que qualidade, inovação e uma boa história podem criar um filme único.

Mas, não só grandes estúdios e vencedores do Oscar são capazes de contar boas histórias através de animações. No Pará, o cenário de animação vem se consolidando há alguns anos. Tudo começou nos anos 2000, com a iniciativa de bolsas de pesquisa e experimentação do Instituto de Artes do Pará. 

Ao longo dos anos, as técnicas de criação foram mudando, indo desde animações em 3D à produções feitas à mão, desenhadas no papel e escaneadas. A partir disso surgiram produções como A Festa da Pororoca, Nossa Senhora dos Miritis, Revolta das Bandeiras, O Menino Urubu, Visagens e Assombrações, Crônicas de um Palhaço, e Muragens, crônicas de um muro; todas criadas e produzidas no Pará. 

A profissionalização no setor de animação paraense foi impulsionada por políticas públicas e editais de fomento. No final dos anos 2000, o Ministério da Cultura começou a oferecer editais específicos para curtas-metragens de animação, permitindo que os artistas paraenses acessassem recursos e se profissionalizassem. Na década de 2010, com o Fundo Setorial do Audiovisual e as políticas da Ancine, as oportunidades se expandiram, permitindo a criação de projetos maiores, como séries de animação. Com isso, a necessidade de formação surgiu.

Formação: O Curro Velho como Porta de Entrada

Atualmente, no Pará, um dos espaços de formação que se tornou referência no estado é o Curro Velho. Desde 2013, o espaço, que oferece cursos e oficinas, abriga o único laboratório de animação de uso exclusivo para o aprendizado inicial de técnicas de animação. Na área, são oferecidas oficinas de roteiro, ilustração, cenário, ilustração de personagens, criação de voz para desenhos animados e stop motion.

Andrei Miralha, produtor e diretor de desenhos animados, considera o espaço uma porta de entrada para quem quer começar a fazer animação, por ser um lugar onde pessoas interessadas no gênero podem se encontrar em torno de um interesse em comum, e até mesmo conhecer pessoas mais experientes na área para compartilhar conhecimentos que um iniciante possa demorar mais para aprender.

“Eu acho legal essa troca de experiências entre os alunos que estão começando. Todo mundo no seu nível de aprendizado. E fora do Curro Velho, existem outras iniciativas que entusiastas podem participar dentro de algum estúdio, processo, ou projeto. Se aprende muito trabalhando junto com outras pessoas que já fazem animação”, disse.

Foto: Divulgação

Algumas formações também são oferecidas a partir de projetos inscritos nas leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, que incentivam a cultura. Isso tem ampliado a quantidade de formações dentro da área de animação oferecidas por meio desses desses editais. Entretanto, apesar das leis de incentivo existirem, ainda não são suficientes para suprir todas as necessidades do setor. 

Apesar da possibilidade de parcerias da iniciativa privada, essas oportunidades se concentram nas regiões Sul e Sudeste, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, deixando as regiões Norte e Nordeste dependentes de leis de incentivo. Entre os principais desafios enfrentados pelo setor da animação no Pará estão a questão financeira, de formação e de oportunidades. 

Para que os artistas tenham acessos a recursos e produções de maior qualidade, a regularidade em oportunidades de qualificação se torna essencial. Para Andrei Miralha, a regularização de oportunidades pode ser alcançada através de editais públicos. Para ele, o edital é a forma mais democrática para acessar recursos pensando no caráter artístico de produzir filmes de animação.

O produtor afirma que as oportunidades de editais fazem com que a iniciativa pública seja um canal melhor constituído. “Não que não exista através da iniciativa privada a oportunidade de editais que a gente possa acessar, mas que sejam editais que nos permitam ter liberdade criativa. Quando a iniciativa privada quer alguma coisa, a gente precisa atender às expectativas e as necessidades deles. Mas eu acredito que a gente quer fazer filmes a partir de uma perspectiva nossa de criação e expressão”.

Para Iago de Almeida, diretor e animador, apesar das leis de incentivo serem importantes para o desenvolvimento de produções, elas ainda não são suficientes para suprir as necessidades da área, seja com produções diferentes, pagamento adequado de profissionais ou oportunidades de parceria. “As leis de incentivo ainda não estão no seu melhor estado para realmente desenvolver esse setor aqui na região, mas são fundamentais para dar um pontapé inicial em produções e na criação de novos coletivos”.

No Pará, está em andamento a lei Milton Mendonça, também chamada Lei do Audiovisual Paraense. Essa lei estrutura toda a cadeia produtiva da animação, tanto no aspecto de formação, quanto em oportunidades de fomento. “Eu acredito que a gente precisa ter esses mecanismos bem estruturados, para que a gente possa ter regularidade, planejamento e melhora nas produção, para que a gente possa ampliar elas. Acho que quanto mais a gente faz, melhor a gente pode ficar”, afirma Andrei Miralha.

Outra carência na região amazônica é a falta de estúdios produzindo filmes do gênero, comparado ao eixo Sul e Sudeste. Aqui, os estúdios mais conhecidos são o Iluminuras e Muirak. Esses estúdios trabalham com produção de filmes e séries, mas contam com número reduzido. “Nós não temos cursos, nós não temos uma faculdade de animação. A gente tem poucos festivais. Agora que está sendo incorporado em Belém a cultura dos festivais de animação, principalmente de produções animadas. E aí vem a importância das políticas públicas”, disse o animador Giza Santos.

Foto: Divulgação

Distribuição: Os Caminhos para o Público

Além disso, a dificuldade da distribuição dessa essas obras impossibilita que outras pessoas conheçam esses trabalhos. Esse fator se torna um grande obstáculo para o fortalecimento e consolidação da animação paraense, o que dificulta que ela se torne competitiva no mercado nacional e internacional.

As mostras e festivais acabam sendo a principal forma de fazer a distribuição e fazer com que essas obras cheguem ao público. Alguns projetos de profissionais são distribuídos através de redes sociais ou do YouTube. Mas, para Iago, essa estratégia acaba diminuindo a exclusividade da obra, o que pode ser um obstáculo para a competitividade.

“Até mesmo para ser apresentada em mostras e festivais isso pode ser um empecilho. Mas, se essa questão mercadológica não for o principal foco do projeto original, também não há nenhum problema em colocar disponível ali no YouTube, por exemplo. Até mesmo porque é muito importante que as obras sejam vistas, de uma forma ou de outra”.

Andrei conta que, pelo fato de algumas produções paraenses terem sido produzidas por meio de editais públicos atrelados a alguma TV pública, a primeira exibição, chamada de Primeira Janela, é realizada em alguma emissora pública. No Pará, o primeiro edital desse tipo foi da TV Cultura, voltado para produção de obras audiovisuais, e dentre elas uma série de animação. 

Andrei é produtor do Iluminuras, e junto com o estúdio conseguiu produzir a série Icamiabas na Cidade Amazônia, que foi exibida em primeira janela na TV Cultura do Pará. Outra série produzida, desta vez com edital da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e em parceria com a TV Brasil, foi a Brinquedonautas. Ela foi exibida na TV Brasil e outros canais públicos e universitários do país. Depois, a obra foi licenciada para o Nat Geo Kids, um canal de TV por assinatura da National Geographic dedicado às crianças.

Foto: Divulgação

Por serem artistas amazônidas, os animadores costumam criar a partir do seu ponto de vista, sua realidade, genealogia, de onde vieram, do que consomem e do que está ao seu redor. Por isso, é difícil não falar do povo amazônico, da cultura e do imaginário regional em suas animações.

“Se a gente for analisar todas as animações que já foram produzidas até hoje, é possível notar que todas falam de algum aspecto da cultura amazônica. Seja da realidade urbana, uma realidade ali dentro da floresta, seja alguma coisa mais pautada na realidade ou na fantasia, mas sempre um ponto de vista daqui”, frisou Andrei Miralha.

Giza Santos comenta que é comum elementos da cultura paraense transparecerem dentro de uma animação produzida pelo coletivo Luzco Fusko. O coletivo, do qual ele e Iago fazem parte, nasceu através da ideia de vários amigos poderem seguir trabalhando juntos, trocando experiências, vivências e conhecimentos. Com o tempo, isso possibilitou que eles pudessem criar suas próprias histórias e gerar seus próprios projetos.

Uma das produções do coletivo é a animação Guardiões da Cobra Grande, uma história inspirada na lenda da Cobra Grande. A narrativa acompanha Porakín, um jovem guardião em treinamento que precisará aprender sobre coragem, respeito às tradições e a responsabilidade de proteger esse sono ancestral. “A gente tenta usar muitos desses elementos e essa história é contada dessa forma. Buscamos muito dentro da nossa raiz e da nossa cultura para contar uma boa história”, afirma Giza.

Iago de Almeida tenta trazer a ancestralidade indígena como foco principal em suas criações. Segundo ele, a cultura indígena é milenar e muitas vezes é mal representada, ignorada e esquecida. “Eu tento trazer um pouco dessa cultura amazônica para as nossas produções, para as minhas ideias e projetos. Tanto no que a gente já fez até agora quanto nos projetos futuros”.

Apesar dos desafios financeiros, de formação e de distribuição, o cenário da animação paraense se mostra promissor e conectado com o mundo. Hoje, as oportunidades de trabalho para animadores e estúdios locais não se limitam mais ao Pará, mas se estendem a outras regiões do Brasil e até mesmo a produções internacionais. Giza Santos, por exemplo, além de atuar no coletivo Luzco Fusko e em projetos locais, como Icamiabas na Cidade Amazônia e Brinquedonautas, também presta serviços para estúdios nacionais como o Alopra e contribuiu para produções da Netflix, como Agente Elvis e América: The motion picture. Essa conexão global prova que a qualidade e a visão única dos artistas paraenses são reconhecidas para além das fronteiras regionais, abrindo um leque de possibilidades para o futuro do setor.

Produção: Joyce Silva e Samilly Santos
Texto: Ryan Reis

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