Olhares sobre a mandioca: culinária, memórias e histórias

6–9 minutos

O tucupi é um líquido de cor amarela derivado da mandioca, de sabor ácido e único, presente em diversas receitas na culinária paraense. Matéria-prima do tacacá, o caldo é, também, um instrumento de preservação de memórias e histórias. É o caso da tacacazeira Neide Sobrinho, que desde pequena via a avó Leunice cozinhando e ficava ali, na beira do fogão, observando cada etapa do preparo. Com o tempo, foi crescendo e aprendendo não apenas os segredos de um bom tacacá, mas também a conquistar os clientes, afinal, vez ou outra acompanhava a matriarca da família nas vendas, em uma banca, ao lado da Basílica Santuário de Nazaré, em Belém.

Neide Sobrinho segurando uma cuia de tacacá. Foto: André Furtado.

Mais de 60 anos depois, poucas coisas mudaram. Dona Leunice faleceu em 2011, mas o ponto do tacacá segue no mesmo lugar, em uma das avenidas mais importantes para o Círio e que carrega o nome da padroeira da Amazônia: Avenida Nazaré. O ponto ‘Tacacá Paraense’ fica a poucos metros da Basílica e, hoje, é comandado por Neide, que repassa o tempero e o amor da avó para outras gerações, pela cidade e pelo mundo.

Leunice, avó de Neide, era devota de Nossa Senhora de Nazaré. Na barraca, há uma foto dela com a imagem de sua santa de devoção. O Círio mexe com o coração do paraense e movimenta bastante a economia da cidade de Belém. Só em 2024, o Aeroporto Internacional Val-de-Cans registrou o desembarque de mais de 10 mil pessoas apenas no final de semana da festividade, número que indica mais que o dobro de movimento em dia normal.

Este número, de acordo com o Ministério do Turismo, somam-se aos mais de 2 milhões de pessoas que acompanharam a principal procissão no segundo domingo de outubro. Luiz Cláudio Martins, analista do IBGE, explica que a procura por ingredientes do tacacá aumentam à medida que o Círio se aproxima: “Mesmo sem dados diretos sobre o consumo do prato, a variação de preços do tucupi e do camarão nos meses de setembro e outubro indica uma pressão sazonal que pode ser atribuída à preparação para a festividade, reforçando a importância cultural e econômica do Círio na dinâmica do consumo local”, ressalta.
O número elevado de visitantes também reflete nas vendas de Neide, por esse motivo, ela contrata pessoas a mais para trabalharem de forma  temporária durante a festividade, tudo isso para dar conta da demanda. “Em média, eu vendo 30 cuias por dia, no Círio esse número triplica”, enfatiza a tacacazeira. A barraca é a principal fonte de renda da família Sobrinho e o legado, que começou com a avó, segue sendo passado adiante para as novas gerações.

“Somos cinco filhos: quatro homens e uma mulher. E ela [a avó] sustentava todo mundo com o tacacá: filhos, primos que vieram do interior pra morar com ela… Minha avó ajudou muita gente. É gratificante quando alguém chega pra mim e diz ‘sou muito grato à tua avó por tudo que ela fez por mim, pelos ensinamentos’. Hoje, tem gente que tem o próprio empreendimento porque aprendeu com ela. Ela deixou um legado muito maior do que tudo isso”, conta Neide Sobrinho emocionada.

A rotina de trabalho começa cedo: às 7h da manhã, Neide vai até o o Ver-o-Peso, maior feira livre da América Latina, comprar os ingredientes. De lá, segue para o preparo em sua casa, e depois leva tudo para o ponto de venda. A história do tacacá levou Neide a lugares que nem imaginava. Em um momento em que estava desanimada, sua história apareceu em uma reportagem no Globo Repórter, da TV Globo.

O conteúdo fazia uma viagem pelas cinco regiões do país para conhecer os sabores que se transformam em fonte de renda e, curiosamente, foi exibida justamente no dia do aniversário de sua finada avó, seis de dezembro. 

Essa coincidência reforçou ainda mais a ligação entre memória afetiva e tradição alimentar — uma relação que atravessou fronteiras na etapa seguinte de sua trajetória. Sua primeira viagem de avião foi para o Paraguai, para falar do tacacá.

O convite para conhecer um novo país surgiu com o “Projeto Ofício das Tacacazeiras”, uma iniciativa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). O projeto busca documentar e registrar o saber tradicional das mulheres que preparam o tacacá como Patrimônio Cultural do Brasil, garantindo sua continuidade e transmissão às futuras gerações, além de promover a formulação de políticas públicas que melhorem as condições de trabalho dessas mulheres.

“Fomos convidadas pelo Iphan e pela professora Luciana, responsável pelo projeto, para levarmos ao Paraguai, em uma conferência intergovernamental no Paraguai. Fomos fazer demonstração e degustação do tacacá”, detalha.

Assim, em dezembro de 2024, ocorreu a 19ª Sessão do Comitê Intergovernamental da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (CPI), que discutiu de que forma as culturas alimentares tradicionais são impactadas pelas mudanças climáticas e como podem contribuir para os esforços de adaptação e resiliência. No avião, em uma caixa térmica, levou tudo congelado e realizou a degustação justamente no dia do aniversário da avó, uma coincidência que se tornou uma homenagem. Esses momentos evidenciam o forte elo familiar construído a partir da cultura alimentar.

Tacacá e encontros

Para quem consome regularmente as iguarias derivadas da mandioca, os alimentos sempre possuem um sabor especial de afeto. Tomar um tacacá com amigos, por exemplo, não é apenas um encontro casual, mas uma oportunidade de confraternizar. Quem confirma isso é o estudante de Cinema & Audiovisual, Fabricio Abreu, que possui o costume de se reunir com amigos ao menos duas vezes por mês para apreciar o prato típico em um restaurante especializado.

“A comida meio que toma duas vias: a do desejo de querer consumir e a de encontrar amigos. Quando vou tomar tacacá, sempre vou com um amigo da faculdade, que já é meu acompanhante fixo. Falo pra ele que é o nosso momento de manutenção da amizade fora da faculdade”, narra Fabrício.

Em registro informal, Fabricio demonstra momento descontraído com amigos. Foto: Acervo pessoal.

A característica do lazer atrelado ao momento do consumo do tacacá costuma render boas memórias, histórias e risadas ao estudante e ao grupo que o acompanha. “Como sempre vou acompanhado de amigos, nós conversamos e rimos muito juntos, conversamos mais algumas banalidades, então, não tem algo muito incrível acontecendo, mas estamos juntos e felizes e essas são boas memórias”, conta o estudante.

Além de destacar o consumo do tacacá na rotina, Fabrício também alerta para a importância da valorização dos sabores regionais. Na visão do estudante, ainda falta um maior reconhecimento da culinária nortista em âmbito nacional. “Um caso que também vejo frequentemente é em relação à maniçoba, quando há um certo estranhamento por pessoas que não são daqui que tecem alguns comentários maldosos”, pontua.  

Diferentes formas e texturas da raiz no veganismo

Em um restaurante vegano popular, localizado no bairro da Terra Firme, periferia de Belém, o tacacá ganha outra roupagem. Com azeitonas pretas, tomate seco, nori (espécie de folha feita com algas marinhas) e jambu, o prato é ressignificado para o veganismo. A criação é do restaurante Veg Casa, dos sócios Frank Albert e Patricia Souza, que levantam a bandeira do veganismo popular – estilo de vida que defende a não utilização de produtos de origem animal em todos os aspectos da vida cotidiana – há mais de quinze anos na capital paraense

O Veg Casa surgiu em 2009. Na época, o empreendimento era restrito às festas punks de Belém, em uma resposta à falta de oferta de alimentos veganos nestes espaços. “Vendia salgados e depois passei a fazer marmitas veganas. De lá para cá tudo mudou”, conta Frank, relembrando o início de tudo.

Para  os sócios, é de extrema importância produzir versões veganas das comidas típicas, além de vender por um valor que seja acessível a todos os públicos. “Para além do veganismo, as pessoas param de comer maniçoba porque tem muita gordura, ou param de comer vatapá por intolerância ao glúten, ou mesmo o tacacá por alergia a camarão. A alimentação vegana tem esse valor social, não é porque você é vegana que você vai se excluir da ‘sociedade carnista’, não é isso”, explica Patricia.

Dentro do veganismo, a mandioca é ingrediente de pratos como o vatapá, é utilizada na massa de “peixes” veganos, e até a água do cozimento é aproveitada. “Usamos a água para colar as folhas de nori na base do peixe vegano, além de molhos e também no purê de macaxeira com castanha do Pará”, finaliza Frank.

Para além de alimento, a mandioca é capaz de mudar a vida de pessoas como Neide, Patrícia e Frank. Além de dar sabor ao encontro de amigos, como é o caso Fabrício. Muito mais que uma raiz, no Norte do Brasil ela ganha um significado a mais: de resistência e de legado que atravessam inúmeras  gerações.


Avatar de ParauaraS

Publicado por

Deixe um comentário