Foto da capa: Mácio Ferreira/Ag. Pará
Falar de mandioca, vai além de saborosas receitas ou de uma raiz forte que traz subsistência, ainda hoje, para inúmeras famílias por todo o Brasil, especialmente no Norte. É falar de ancestralidade. Ao longo das tarefas diárias, o amazônida se depara com a mandioca e seus derivados no prato. Mesmo com esse ingrediente tão presente, já paramos para refletir sobre sua importância na rotina da região?
A mandioca é denominada como ‘Planta de Civilização’ em pesquisas desenvolvidas por historiadores. Segundo a professora Sidiana Ferreira, pesquisadora de cultura alimentar na Amazônia pela Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, uma planta de civilização é uma planta responsável por alterar toda a estrutura da sociedade.
“A colonização só é possível por causa da mandioca e das técnicas de produção dos derivados dela. Não foi possível um processo de colonização ter acontecido, se povos indígenas, povos ancestrais, não tivessem desenvolvido a domesticação, o cultivo da mandioca e de seus derivados”, explica a docente.

Para além da ocupação colonial na Amazônia, a tecnologia do cultivo não apenas facilitou o caminho do colonizador, mas proporcionou a fixação e o desenvolvimento da subsistência própria das populações nativas.
Para Tainá Marajoara, cozinheira e fundadora do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, de Belém, tudo o que é feito com a mandioca é uma forma de inovação. “Acontece que inovação, para o branco, é o que ele fez hoje. E o que a gente vem fazendo, ele não considera um processo de inovação porque não foi ele quem fez. Se a gente come hoje derivados de mandioca, é porque também são processos de inovação. E os povos, ainda que sejam povos ancestrais, ainda que sejam povos que mantêm suas culturas milenares, também são povos que vivem em transformações culturais e fazendo as suas adaptações “, afirma.
Resquícios de pensamento colonial se mostram presentes em detalhes do cotidiano, que muitas vezes podem passar despercebidos, mas que carregam uma carga de preconceito em relação à própria história e a forma de um povo se relacionar com a cultura alimentar, como é visto em piadas comuns. “Acho extremamente desrespeitoso quando a gente escuta aquela piada: “Quantos indígenas precisaram morrer para saber que a maniçoba fervia por 7 dias?”. É um desrespeito à nossa cultura”, argumenta Sidiana. Conforme a docente, a cultura alimentar da região é um legado de povos indígenas. Sendo assim, reproduzir falas do tipo reduzem o entendimento dos povos à ideia de experiência ou de experimento. A tecnologia foi acumulada a partir do saber ancestral e da observação da natureza praticada pelos povos indígenas, que proporcionou o desenvolvimento de receitas como a própria maniçoba. Assim, descobriam-se as plantas que traziam cura ou veneno, por meio da relação com o território, vivência e olhar aos animais.
Cultura, sustentabilidade e gastronomia amazônica
A cultura de cultivo e consumo da mandioca passou por diversas mudanças e adaptações ao longo dos séculos, para se manter viva até os dias atuais. Hoje, especialistas temem o desaparecimento das formas tradicionais de plantio e transformação do tubérculo. “Não sei dizer se daqui há 40, 30 anos a gente ainda vai encontrar essa mesma estrutura, porque algumas mudanças dentro da própria sociedade estão alterando isso. Quando você cria diretrizes para você ter o selo de indicação geográfica, por exemplo, você está alterando essa estrutura”, aponta Sidiana.
Outros pesquisadores e pesquisadoras também se dedicam a compreender a constante atualização do papel da mandioca nos pratos e nas vidas dos povos da Amazônia. É o caso do agrônomo Raimundo Brabo Alves, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Raimundo é reconhecido por pesquisas e iniciativas voltadas ao desenvolvimento de políticas públicas de sustentabilidade e à preservação da floresta amazônica, além de ser especialista em mandiocultura.
“A mandioca segue sendo um pilar central na agricultura familiar amazônica, garantindo segurança alimentar, renda e resiliência. Embora continue sendo a base do sustento rural em muitas comunidades, sua relevância varia”, diz Raimundo. Segundo ele, a mandioca está presente em mais de 80% das propriedades familiares na Amazônia, embora desafios de mercado, como preços baixos e logística, reduzam sua exclusividade como fonte de sustento.
As pesquisas também se preocupam em compreender a relação entre a atual forma de produção da raiz e os modelos ancestrais, como destaca o pesquisador: “As técnicas ancestrais de cultivo indígena, como roças de coivara, consórcio de culturas como mandioca, milho e feijão, e manejo de solos com terra preta, integram-se às práticas agroecológicas atuais na Amazônia por meio da rotação de culturas, uso de adubos orgânicos e preservação da biodiversidade”.
Os modelos de cultivo também contribuem para a conservação do bioma, tendo em vista a crise climática, por sua característica sustentável: as práticas são adaptadas ao clima local e reduzem a dependência de insumos químicos. Comunidades indígenas e agricultores familiares combinam os métodos tradicionais com inovações agroecológicas, como compostagem e sistemas agroflorestais.
Mandioca e valorização da cultura alimentar
A partir do momento que a cultura alimentar foi reconhecida como uma expressão cultural e passou a integrar o Plano Nacional de Cultura e o Relatório Nacional de Finanças, em 2013, novos temas entraram no debate, como meio-ambiente, cultura, preço mínimo, políticas de clima, trabalho, entre outras áreas — temas estes fundamentais para a compreensão do ciclo até a chegada da mandioca em forma subprodutos no prato do paraense.
Ao refletir sobre o preço da mandioca, o primeiro questionamento não deve ser o valor, e sim o processo que impacta a produção e é refletido nos preços. Em um país onde o agronegócio pauta a política alimentar, ocorre uma incidência sobre a regulamentação dos preços que não gere nada que fique no campo, de acordo com Tainá Marajoara. A falta de políticas públicas para a agricultura familiar e agroecologia impactam não só no valor final da mandioca, mas também no valor geral dos alimentos.

Segundo Tainá, um dos principais impasses que surge com o quadro é a gourmetização, uma condição conectada com o racismo alimentar e colonialismo. “Quando um pirão de mandioca precisa ser substituído por um aligot de mandioca, ou quando um bolo de macaxeira precisa ser servido com uma determinada estética para dizer que aquilo tem valor”, exemplifica.
Os alimentos possuem gostos e apresentações originários, no entanto, segundo a cozinheira, as características vêm sendo destruídas pelo avanço do ultraprocessado e da gourmetização. “Se não tiver dentro dessa estética, desse quadro europeizado e colonialista que dissocia da nossa identidade, ele perde o gosto e a perda do gosto é a perda de memórias. Sem memórias, não existe resistência”.
Quando questionada sobre as perspectivas do futuro da mandioca para a gastronomia, Tainá afirma: “Não existe produção sustentável com latifúndio”. Para que a produção seja desenvolvida de forma sustentável, ela deve se adaptar às realidades locais, garantindo o acesso aos alimentos. Para Tainá, não há futuro quando este está sendo pautado pelo colonialismo e a destruição das culturas alimentares.
“É necessário que as roças ancestrais e a agricultura familiar sejam mantidas de pé. O futuro está ligado diretamente à garantia dos territórios, da reforma agrária, da demarcação das terras indígenas, das regulamentações quilombolas, então só existe futuro da mandioca, se existir o futuro dos povos”, conclui.
Texto: Ayla Ferreira e Douglas Borges


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