Todo paraense sabe quem é Matinta Pereira. Se nunca a viram, com certeza já a escutaram por aí, ouviram um assobio ou o canto de uma rasga-mortalha e sentiram um frio na espinha. A mulher centenária que se transforma em animal e anda de porta em porta na vizinhança em busca de tabaco é um patrimônio amazônico. O que poucas pessoas conhecem, no entanto, é a origem dessa visagem – e o que essa história de assombração pode nos contar sobre a presença (e o apagamento) dos povos originários na cultura e no imaginário da nossa gente.
Não sei quanto a você, mas eu sempre imaginei a Matinta exatamente como é retratada na capa do livro “Visagens e Assombrações de Belém”, do saudoso Walcyr Monteiro. O clássico paraense, publicado pela primeira vez em 1986, apresenta-nos uma Matinta de costas recurvadas, recobertas por uma grande e volumosa túnica preta, mãos envelhecidas e um sorriso diabólico (bastante parecida com a bruxa má da animação de 1937 da Branca de Neve, produzida pela Disney).

Mas será que essa é a única forma de representar a Matinta? Certamente não! Afinal, antes de virar visagem, ou wãkãkã, Matinta era uma mulher indígena! Quem conta essa história é Yaguarê Yamã no livro “Anavilhãnas – Mitos Indígenas da Amazônia”, um dos volumes da coleção “Mitos Indígenas do Brasil”, organizada por ele e ilustrada por Ikanê Adean.
Segundo Yaguarê, a história de Matĩ Tapewera tem raízes tupinambás, e espalhou-se pelo território amazônico em nheengatu, também chamada de língua geral da amazônia. Aliás, o nome hoje conhecido como “Matinta Pereira” é uma versão aportuguesada do nome original da entidade, Matĩ Tapewera, que, traduzido para o português, significa algo como “o fantasma da casa abandonada”.
Quando era gente, Matĩ Tapewera vivia na região do rio Tapajós, justamente durante a época em que a invasão portuguesa à Amazônia começou, ou seja, no século XVII, mais de 100 anos depois do início da colonização brasileira. Naquele tempo, Matĩ já era uma idosa e morava com seu neto em um povoado.
Amedrontados pela violência dos portugueses, o povo de Matĩ decidiu que a melhor opção era se esconder na mata para se proteger dos invasores. Mas havia um problema: eles não podiam plantar sob essas condições e a comida estava ficando escassa. Foi nesse momento de provação que, conforme relatam, Matĩ traiu o próprio povo em troca de alimento.
O resultado? Agora que sabiam onde o povoado estava, os portugueses desembarcaram na região e começaram um massacre. Yaguarê narra que, durante o caos da invasão, o pajé (malyli) descobriu que Matĩ tinha sido a traidora e, por isso, decidiu amaldiçoá-la (ora, imagine-se você no lugar desse pajé, desesperado enquanto ouve os gritos dos seus parentes morrendo pelas mãos de invasores inescrupulosos). Assim, a visaje Matĩ Tapewera surgiu, condenada a nunca morrer. Bem, o resto da história vocês já sabem.

Yaguarê Yamã é professor e escritor indígena, das etnias Maraguá e Sateré-Mawé, e fala do ponto de vista da Urutópiag, a espiritualidade tradicional Sateré-Mawé, intrinsecamente ligada à terra e aos espíritos da floresta. Além da origem da Matĩ Tapewera, você vai encontrar a história de muitas outros encantados amazônicos (por exemplo, Kurupyra e Yara) no livro “Anavilhãnas”, cuja leitura eu recomendo fortemente.
Agora você pode estar se perguntando: “Puxa, como eu nunca tinha ouvido falar dessa história?”, indagação que eu também me fiz enquanto lia a obra de Yaguarê. Uma resposta possível é o apagamento indígena que assola a cultura brasileira desde a colonização, resultado de um processo sistêmico de etnocídio. Hoje, a gente já até ouve falar de uma “Belém indígena”, de “Mairi Tupinambá”, mas ainda encaramos a identidade indígena e a cultura dos povos originários como coisas muito distantes das nossas cidades.
A transformação de encantados como Iara, Boto, Curupira, Matinta e tantos outros em “folclore” no imaginário popular, desassociando-os de suas origens indígenas e relegando-os ao passado, como se não fosse razoável crer nesse seres hoje em dia, foi um dos mecanismos utilizados para concretizar esse apagamento. A imagem do indígena foi infantilizada e demonizada ao mesmo tempo, foi associada ao atraso e destituída de sua complexidade enquanto identidade humana, e isso reverbera na maneira como construímos as narrativas sobre a cultura amazônida até hoje.
Na realidade, cada povo indígena é um universo. A história da Matĩ Tapewera, por exemplo, é apenas uma entre várias. Para Márcia Kambeba, escritora e cantora indígena de origem Omágua Kambeba, a Matinta Pereira não é uma entidade maligna, mas, sim, uma encantada que protege as matas. Conforme essas cosmologias, o assobio da Matinta causa medo, principalmente, naqueles que destroem a floresta. Para outros povos, a Matinta significa a visita de ancestrais, antepassados falecidos que retornam à aldeia na forma de aves. Não sei vocês, mas eu acho essa diversidade toda muito bonita!
Mais interessante ainda é perceber como existe um pouquinho de todas essas “versões” da Matinta, todas elas indígenas, nas histórias que ouvimos quando crescemos em uma cidade amazônica.
Espero que você lembre disso da próxima vez que escutar um assobio forte à noite.
Dicas de leitura para toda a família:






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