Entre o ontem e o hoje

8–12 minutos

A tradição que une gerações em Cametá

O Círio é uma festividade que atrai os olhares do mundo para o estado do Pará. O segundo semestre do ano anuncia a chegada da festividade na capital, Belém, e nas cidades do interior, como no município de Cametá, na região do Baixo Tocantins. O Círio na cidade ocorre no terceiro domingo do mês de setembro e reúne milhares de devotos. Mesmo não morando mais na Terra dos Notáveis, todos os anos recordo e vivo nas lembranças a grande procissão: as crianças vestidas de anjo; a berlinda ornada com flores; a pequena imagem tomando as ruas e os olhares de Fé que em lágrimas transbordam pedidos e agradecimentos.

A memória é uma forma poderosa de voltar ao passado para compartilhar, no presente, momentos tão marcantes. Com 70 anos, Benedito Vicente de Souza Coelho é um exemplo. Primeiro presidente do Círio e da Guarda de Nazaré em Cametá, ele compartilhou comigo a história do Círio na cidade. Nossa conversa foi de tarde, na Igreja de Santo Antônio, lugar em que houve a primeira reunião que deu origem ao Círio da cidade. Na época, o espaço era de madeira, hoje é de alvenaria. Eu e seu Vicente sentamos um ao lado do outro, no primeiro banco da Comunidade Cristã. Em nossa frente, a imagem de Santo Antônio, no altar; em nosso lado direito, um cartaz anunciando o 32º Círio de Nazaré e na igreja, de forma silenciosa, Guilherme Neto, neto de Vicente, acompanhava a entrevista enquanto ornamentava a igreja para celebração do domingo. 

Foto de Benedito Vicente de Souza Coelho dentro da Igreja de Santo Antônio. Crédito: André Furtado

A devoção à Nossa Senhora de Nazaré já atravessa séculos no Pará. Em Cametá, o Círio teve seu pontapé inicial com uma visita da imagem peregrina de Nossa Senhora à cidade, em 1992, em comemoração ao Círio 200 de Belém. “A Diretoria da Festa pediu um grupo de 50 homens para serem os guardas da santa. Queriam que tivesse uma diversidade que representasse toda a sociedade [cametaense]. Tinha estivadores, gente de comunidade cristã, da feira… e eu fiz parte”, conta Vicente. A imagem desembarcou na cidade em um sábado, passou dois dias e depois retornou a Belém, tempo suficiente para fazer história e emocionar os católicos do município.

“Ela chegou num sábado, naquela época, o aeroporto da cidade era bem atrás do cemitério e próximo tinha um quartel da polícia. A imagem desceu do avião para o quartel, onde fizemos uma oração. Depois nós acompanhamos ela para a Catedral de São João, onde ficamos em vigília até meia-noite. No dia seguinte nós saímos no Círio pela manhã, no terceiro domingo de setembro. A procissão saiu do quartel e percorreu por duas horas as ruas da cidade. Foi um marco! A cidade parou nesse dia, veio gente do interior de barco… tinha muita gente”, relembra com emoção.  

Um ano após a visita, em 1993, uma missa relembrou a visita da imagem. Na volta para casa, em uma conversa descontraída com amigos da igreja, veio o desejo de criar o Círio, em Cametá. “Depois da missa, quando a gente veio andando surgiu a ideia: ‘por que a gente não faz o Círio no outro ano?’. Foi aí que marcamos uma reunião aqui [na igreja em que a entrevista estava sendo feita], convidamos o padre, fizemos a proposta e ele nos orientou a levar para o bispo, que na época era o Dom José Elias Chaves. Ele gostou da ideia e nos cedeu uma sala da casa dele para a gente se reunir”, destaca sorridente. 

No ano de 1994, uma devota presenteou a comissão com uma imagem de Nossa Senhora e foi a partir daí que o Círio floreou em Cametá. “Nós criamos o grupo, mas não tínhamos a imagem, quando foi em 94 uma devota de Belém, que veio na peregrinação de 92, nos presenteou com uma imagem e foi aí que ganhou força. Nesse primeiro Círio, nós tentamos repetir o mesmo percurso que fizemos com a imagem de Belém, saindo do quartel, os bombeiros pediram pra gente evitar ruas com curvas. No ano seguinte, foi dada a ideia da santa sair de uma escola até que teve um ano que a Campanha da Fraternidade falava algo da saúde e nós resolvemos sair de um hospital”, detalha Vicente. 

O hospital em questão foi onde nasci, a Maternidade Santa Luiza de Marilac, gerenciado pela sociedade de vida apostólica feminina Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. “A ideia não era ficar fixo lá, mas sair, diversificar, só que eles fizeram tão bonito que não deu coragem de tirar mais de lá”, enfatiza. Esse ponto de partida tem um significado afetivo especial para mim, eu acompanhei o Círio de lá por bastante tempo: acordava cedo e com minha mãe ia para a missa. No estacionamento do hospital, onde a celebração ocorre, encontrava minhas tias, minha avó e meus amigos. Dentro da berlinda, Nossa Senhora recebia homenagens em chuvas de balões, confetes, fogos e muitas lágrimas, que marcam o encontro do humano com o divino.  

Até hoje o Círio de Cametá ainda tem o mesmo ponto de partida com uma diferença: a procissão, desde o fim da pandemia, é realizada à noite. A mudança não agradou Vicente e nem alguns fiéis. “Eu conversava com um amigo meu e um vizinho dele que me perguntaram quando que o Círio ia voltar a ser de manhã. Fazer ele de noite é algo que não bateu comigo. Antes vinham caravanas para participar, se reuniam nas vilas e vinham. [Com a mudança de turno] foi acabando, porque é complicado pro cara vir do interior de noite”, enfatiza. 

Outro ponto muito marcante no período do Círio é a presença do cartaz que anuncia a festa na porta de residências da cidade. Vicente, relembra que nos primeiros Círios, o material vinha integralmente de Belém, mediado por Teresa Furtado, outra devota que ajudava a organizar o evento mariano. “No começo do nosso trabalho, nós tivemos muita ligação com Belém. O cartaz não era nosso, a gente não tinha cacife [dinheiro] para fazer, aí a gente pegava o cartaz de Belém e colava o nosso tema em cima. A dona Teresa Furtado tinha uma ligação muito forte com alguém da diretoria de lá, ela conseguia cartaz, livro e mandava para cá e a gente distribuía na cidade toda, íamos deixando para as comunidades fazer a divulgação” destaca. 

O seu Vicente, hoje, não integra mais a equipe de organização do Círio da cidade, mas o seu legado continua vivo e quem leva adiante é o seu neto, Guilherme. Enquanto conversávamos, ele organizava a igreja e Vicente recorria a ele, em alguns momentos, para ajudar nas lembranças, uma cena bonita de observar. Quando Guilherme Neto se afastou, Vicente declarou: “o Neto, morou comigo desde quando nasceu, ele tinha uma devoção muito grande com nossa senhora desde criancinha. Ele dormia muito e pra acordar era só falar  assim: ‘Neto, tem romaria agora com Nossa Senhora’ e ele acordava rapidinho”, relembra observando o Guilherme reaparecer na igreja.

Eu já conhecia o Guilherme antes dessa entrevista, nós estudamos juntos no ensino fundamental e médio. Sou testemunha do quanto ele é ligado à igreja, mas foi só ouvindo o relato de seu avô que tive dimensão do legado que carrega consigo. Resolvi chamá-lo para participar da entrevista. Com uma camisa do Círio ele se sentou numa cadeira, bem à minha frente, de costas para o altar. Sua história, na igreja, foi introduzida pelo avô, mas escrita pela matriarca da família, sua tia-avó já falecida, Zenaide. Na paróquia de São João ele canta e no Círio, decora a berlinda que leva Nossa Senhora de Nazaré. Devoto fiel, este ano ele acompanhou a procissão num lugar em que muitos fiéis gostariam de estar: no núcleo da berlinda, a pouquíssimos metros da padroeira da Amazônia. 

Foto de Guilherme Neto dentro da Igreja de Santo Antônio. Crédito: André Furtado

Com 27 anos de idade, ele participa da celebração mariana desde que chegou neste mundo: “eu nasci no meio do Círio. Acompanhei vendo o meu avô de sábado para domingo não dormir, ele ficava ansioso pensando se o carro-som ia chegar a tempo; se os fogos iam soltar na hora; se o rapaz da corda ia esticar na hora. Então, eu acompanhava de longe essa ansiedade que, de certa forma, a família toda se envolvia. Muita gente é devoto de Nossa Senhora e acompanha a história do lado de fora, eu tive o privilégio de ser devoto e acompanhar a história [do Círio de Cametá] do lado de dentro”, fala olhando fixo nos meus olhos. 

Guilherme conheceu muitos nomes que ajudaram a desenvolver e construir o Círio em nossa cidade natal. “Por ver a história de dentro, eu tinha acesso a bastidores que nem todo mundo tem acesso. A dona Glória era quem fazia o manto com ajuda de sua irmã, Mundiquinha; dona Socorro Furtado era quem fazia a composição do hino do Círio e a dona Tereza Furtado ajudava na organização da festa”, fala olhando para frente, como quem assiste a um filme muito esperado. A missão atual dele é ajudar na decoração da berlinda, ofício que honra com muito orgulho.

“Antes se usava flores artificiais, hoje são naturais e vêm de Holambra pra cá. Chega na sexta-feira à tarde e vai para uma residência que tem um quarto com ar condicionado. No sábado à noite começa a montagem da berlinda. Todo ano tem que ter o lírio, às vezes vai um único, aos pés dela. Quando [o Círio] era de manhã, se usava muita [flor] vermelha, rosa, amarela. Agora que é a noite, se a gente colocar um vermelho na berlinda, ele não aparece. Então, optamos pelas cores mais claras. O branco, o bege, o amarelo. Esse ano ela vem com muita folhagem amazônica. Durante a procissão, isso é um bastidor, sempre vai alguém molhando as flores para ver se chega até a igreja intacta”, revela.

Mesmo com pouca idade, Guilherme já viveu muitos momentos marcantes no terceiro domingo de setembro. “Eu já vi cenas de mães que levam as crianças para agradecer; que levam a filha para cortar o cabelo diante da imagem, em agradecimento à cura de uma doença. Hoje eu me sinto útil apenas na função da decoração. Eu queria poder fazer mais, só que aí o trabalho, o estudo, as outras funções vão tomando o tempo da gente e isso às vezes entristece… Mas no que eu posso, ajudo! Gosto dos bastidores, sabe? Daquilo que todo mundo vê bonito, mas não sabe como foi que aconteceu por trás”, finaliza o jovem.

A música Círios, composta por Vital Lima, fala que ‘outubros’ guardam histórias; contudo, neste pedaço de chão amazônico, banhado pelo rio Tocantins, as memórias são guardadas por ‘setembros’. O relato de Vicente e Guilherme são capítulos de um livro que é escrito nos quatro cantos do estado do Pará e tem como protagonista o Círio, uma celebração cultural-religiosa que há séculos é capaz de aproximar humano e sagrado em tempos verbais tão distantes: passado e presente.

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