Retrato de Mats Steen na sala de sua casa ao lado de um vaso de plantas.
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Ibelin, apaixonado por viver

4–6 minutos

Apesar de não estar mais em seu auge, os jogos de Massive Multiplayer Online Role-Playing Game (MMORPG) foram realmente uma febre no mundo dos vídeo games. Eles permitiam que os jogadores criassem seus próprios avatares virtuais, com diferentes, cabelos, raças, tamanhos e cores, além de dar vida a papeis de cidadãos em um universo fantástico. Eram jogos que exigiam horas de dedicação explorando masmorras, enfrentando dragões e coletando espólios para subir de nível no servidor, mas existem outras recompensas além das presentes no jogo. Em 2025, ainda é comum encontrar relatos de guildas formadas em MMORPGs vivas até hoje, unidas pela amizade que surgiu no jogo. Não longas e solitárias horas compartilhadas com amigos de muita raiva, alegria e intimidade. E ninguém entendia disso melhor que Mats Steen, nascido em três de julho de 1989, na Noruega, e que partiu em 18 de novembro de 2014 enquanto dormia.

“Uma jornada corajosa chegou ao fim. Uma jornada que durou exatamente 25 anos, 4 meses e 15 dias. A jornada de um coração enorme em um corpo frágil e pequeno. A jornada de uma mente brilhante em uma casca frágil demais” foi o que escreveram juntos Mia, Trude e Robert, irmã, mãe e pai de Mats. Ele nasceu com uma condição chamada de Distrofia Muscular de Duchenne, que consiste de um distúrbio degenerativo progressivo e irreversível no tecido muscular. Isso significa que ele perdeu aos poucos os movimentos de seu corpo até o ponto de conseguir mexer apenas seus dedos. Porém, nada disso impediu que o garoto desenvolvesse uma paixão por vídeo games, em especial o MMORPG World of Warcraft, no qual pode viver como Ibelin Redmoore, famoso detetive particular e nobre aventureiro. Sua paixão atraiu várias pessoas e fez surgir muitas amizades no mundo de Azeroth, ao ponto de surpreender sua família ao receber dezenas de e-mails lamentando sua partida e até mesmo se organizando para ir ao seu velório. A história de Ibelin transcendeu o universo do jogo e chamou atenção de outras pessoas, incluindo o documentarista Benjamin Ree, diretor de A Extraordinária Vida de Ibelin, presente na Netflix.

Enterro feito para Ibelin dentro do jogo World of Warcraft. Crédito: Reprodução

Benjamin sem dúvidas teve um grande desafio em mãos ao fazer os recortes da vida de Ibelin no mundo de World of Warcraft. No próprio documentário é dito que todas as conversas no chat do jogo junto com local e outros jogadores que estivessem presentes, além de diários e discussões em fóruns, estavam salvas em um documento de mais de 42 mil páginas. Seria como se uma câmera estivesse acompanhando o garoto a cada passo que ele já deu dentro de Azeroth. Se isso já não bastasse, um pouco mais de um ano antes de falecer, ele chegou a criar um blog chamado Musings of Life (Reflexões Sobre a Vida, em tradução livre), que Mats usou para desabafar sobre sua infância, sua relação com sua deficiência e expressar os sentimentos que viveu enquanto interpretava Ibelin Redmoore. Essa miríade de conteúdo serviu para criar um retrato do que foi a vida de Mats desde que começou a jogar World of Warcraft até o fim de sua vida. Ele foi alguém profundamente amargurado com sua condição, seu corpo e sua vida, e em determinado ponto uma pessoa capaz de machucar outras pessoas por não saber como lidar consigo mesmo.

A Extraordinária Vida de Ibelin conta com entrevista com Mia, Trude e Robert Steen, membros da guilda Starlight da qual Ibelin era membro e animações com os modelos 3D do jogo com atores profissionais de conversas que Mats teve e momentos marcantes que ele protagonizou na vida de outras pessoas. É fascinante ver momentos tão íntimos se desenrolarem de interações inesperadas e casuais dentro de um jogo que a premissa é escapar da realidade para um mundo fantástico.

Na maioria das interações de Ibelin, dá para notar que ele e os outros tentam performar seus papeis, contudo é difícil não deixar que vaze algo que eles realmente estejam sentindo. Mesmo num mundo virtual, a forma como todos se comportam e reagem não se torna menos humana ou genuína. Em seu blog, Mats faz uma brincadeira dizendo que nunca bebeu antes, mas adora ir ao bar depois de alguma aventura com seus amigos e fingir que está bêbado. Algo bobo e engraçado, mas que faz refletir sobre o que de fato é viver. Ele viveu isso mesmo não estando fisicamente em uma taberna nem estando bêbado? Qual a linha que separa exatamente viver e fingir, se é que existe?

Ibelin bebendo em um bar com os demais membros da guilda Starlight. Crédito: Reprodução

Diferente do que muitas biografias com o envolvimento de familiares, o diretor Benjamin Ree tentou mostrar ao máximo as virtudes e defeitos do filho dos Steen. Acima de tudo, e no fim, Mats Steen foi uma pessoa cheia de paixão pela vida e amor no coração. O documentário, através das animações, consegue representar com muita verdade as relações dos membros da Starlight, com namoros, amizades e brigas que ocorreram e cimentaram seus laços.

É sempre difícil recomendar filmes um pouco mais tristes porque nunca deixa de ser contraditório dizer que a pessoa vai gostar muito e chorar pra caramba. É um documentário que vai por um caminho inusitado ao retratar a vida de seu personagem e vale apenas, mesmo para quem não seja familiarizado com esse universo dos vídeo games.

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