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As imagens de Nazaré: O Círio e a metamorfose do tempo

7–11 minutos

Quem cresce em Belém, dificilmente nunca ouviu, ao menos uma vez, a Lenda do achado da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, e como ela, milagrosamente, aparecia e desaparecia dos lugares, expressando sua vontade de permanecer às margens de um igarapé, paisagem tão cara a nós, nortistas. A fama de milagrosa se espalhou rapidamente, e ninguém sabe dizer ao certo o que é fato e o que é fábula, mas é inegável a força extraordinária que há ao redor da pequena imagem, que mede apenas singelos 28cm de altura, e que fez brotar das águas barrentas do Igarapé Murutucu uma manifestação de fé igualmente extraordinária.

A Imagem Original, como ficou conhecida a escultura de Maria, foi encontrada em meio à mata e recolhida, segundo a piedade popular, pelas mãos caboclas de Plácido José de Sousa, seu primeiro guardião, no ano de 1700. Ao olhar para a história oficial do país no período do século XVIII, em que ocorreu o “achado da imagem”, notamos um detalhe quase esquecido: Ainda não havia um Brasil, ou pelo menos não como o conhecemos hoje, e menos ainda qualquer elemento que viesse a se assemelhar a uma identidade nacional.

Em 1700, a presença dos colonizadores portugueses neste território, completava 200 anos, e destes, por cerca de 140 anos a principal mão de obra empregada na colônia era a de mulheres e homens escravizados, raptados em seu continente originário, a África. Fervilhava na época a exploração do ouro recém descoberto na região de Minas Gerais, e junto da exploração, conflitos internos relacionados a ela surgiam a todo momento, como a Guerra dos Emboabas, em 1707.

Belém, que era na época uma jovem cidade de apenas 84 anos, ainda passava por um processo de ascensão e nela presença lusitana se mostrava de forma marcante no dia a dia com sua cultura, arquitetura e religiosidade cristã católica. A nova cultura dos “filhos de Maria”, que se impunha, contrastava com a cultura da população original do lugar, os Tupinambás, “filhos de Maíra”, significativa ancestral deste povo, que emprestava seu nome ao território antes da invasão europeia: Mairí, terra dos filhos de Maíra.

Neste local morava Plácido José de Sousa, que diferente de outros mensageiros da Virgem Maria ao longo da história, não foi canonizado, ou seja, não foi declarado santo pela Igreja Católica, como Juan Diego (vidente de Nossa Senhora de Guadalupe, 1531) ou Bernadette Soubirous (Vidente de Nossa Senhora de Lourdes, 1858). Mas, mesmo assim, seu nome foi eternizado pela piedade popular, e guardado eternamente na memória do que se tornou o Círio de Nazaré, manifestação que nasceu a partir das mãos caboclas de um homem simples e amazônida.

Círio 1978. crédito: Reprodução Fragmentos de Belém

A imagem que Plácido encontrou retrata uma mulher branca, de feições quase europeias, de rosto delicado, rechonchudo, que carrega carinhosamente uma criança, igualmente branca, de cabelos claros e olhos azuis, com o globo terrestre em suas mãos. Não se sabe ao certo de onde veio a Imagem Original, nem quem a criou, mas se sabe que se trata de um ícone de Maria sob o título Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, que faz referência à infância de Jesus na cidade de Nazaré, na Galileia, e cuja devoção era de ampla adesão dos católicos portugueses, o que talvez explique as características físicas retratadas na estátua.

Independentemente da aparência da imagem, Nossa Senhora de Nazaré encontrou lugar nos corações dos habitantes de Belém e de outras cidades, que passaram a se avolumar na província para testemunhar o poder dos milagres relatados, assim, antes mesmo que a Igreja passasse a reconhecer a força da devoção e a organizar a fé dos romeiros a partir de seus princípios rígidos, sem a adesão popular nada teria ocorrido. Desde a construção das primeiras capelas para Maria de Nazaré, passando pela realização do primeiro Círio em 1793, até os dias de hoje.

A palavra Círio, inclusive, vem do latim Cereus, que significa grande vela feita de cera, nome que faz referência às velas utilizadas pelos fiéis para iluminar os caminhos percorridos em peregrinações noturnas, em tempos que a energia elétrica ainda não havia chegado a Belém, mas que também simboliza o tamanho da romaria, bem maior em comparação às procissões comuns. A Imagem Original foi utilizada no Círio, segundo registros historiográficos, do ano de 1793 até 1925, e neste intervalo ela viu tradições serem criadas e perdidas, símbolos serem introduzidos no imaginário “Cirial”, e assistiu, no trono de seus andores, Belém, o Brasil e o mundo mudarem.

Entre os anos de 1920 e 1960, em nome da segurança da bicentenária imagem, uma substituição ocorreu, e uma imagem da Virgem Maria pertencente às irmãs Filhas de Sant’Ana do Colégio Gentil Bittencourt, no centro da cidade, passou a ser utilizada nas procissões. Esta estátua não guarda muita semelhança com a imagem original, apesar de lembrar a iconografia clássica de Nazaré.

Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Nazaré em 2010. Crédito: J Brarymi

Foi apenas no ano de 1969, um ano após o Brasil sofrer um de seus mais duros golpes da história com a promulgação do AI-5, que a Imagem Peregrina chegou à Belém, trazendo mais mudanças. Ao ser encomendada pelos padres Basílica de Nazaré, foi solicitado que o escultor italiano Giacomo Mussner entalhasse na nova escultura feições amazônidas. Assim, em Belém, a Virgem Maria passou a ter um rosto de mulher cabocla, de cabelos negros caídos pelo ombro, de pele escura e olhar marcante e o menino em seus braços recebeu características de uma criança indígena.

176 Círios foram necessários para que pela primeira vez os devotos da Senhora de Nazaré seguissem uma romaria na qual pudessem se enxergar ao olhar a face da imagem que retrata a razão de tanta fé e tanta confiança. Quis o destino que em um ano em que este país parecia caminhar para trás pela força bruta, a doçura de uma mãe cabocla, agora devidamente representada, conduziu seus fiéis às ruas, cumprindo um ritual anual, que encontra seu sentido na coletividade e na solidariedade.

Muitas tensões entre o Círio “oficial” e o Círio “do povo” foram registradas ao longo da história, como na revolta popular contra o arcebispo Irineu Joffily, que chegou a proibir a corda, um dos grandes símbolos da procissão, no ano de 1926, bem como também é verdade que essas duas realidades distintas, mas có-dependentes, tiveram muitos anos de convivência conciliada e harmoniosa. O Círio de Nazaré possui contradições e é importante admiti-las sob pena de falsear a história, e, admitindo-as não se rouba o brilho da festa, mas se consegue compreender a dimensão humana presente no divino que atrai tantas pessoas a se reunir em Belém a cada segundo domingo de outubro.

Essa dimensão, inclusive, pode ajudar a entender a razão pela qual muitos devotos se referem à Mãe de Jesus não com o título de Nossa Senhora de Nazaré, mas simplesmente como “Nazinha”, com sufixo diminutivo, empregado em contextos em que há afeto, para exprimir relação de proximidade. 

Essa proximidade filial entre os devotos e a Senhora da Berlinda ocasionou em Belém um fenômeno interessante no qual os limites racionais, ou os humanos, deixam de fazer sentido, limites de credo, de idade, de renda, de classe, de raça e gênero, todos eles se neutralizam em meio à multidão dos filhos de Nazaré, pois, ao longo de mais de 200 Círios, as mãos do povo ditaram os rumos da festa, mesmo sob tensões, mesmo sob contradições.

Mas, não é, entretanto, contraditório afirmar o Círio de Nazaré enquanto a festa de cultura popular que ele é, afinal sua grandeza se dá pela enormidade do povo que o compõe, e convém mencionar que seria imprudente admitir que as mais de duas milhões de pessoas que percorrem o centro de Belém estão ali vivendo uniformemente e admitindo os mesmos padrões de comportamento e de crença. Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra, a partir da frase é possível afirmar que a beleza do Círio habita na ausência de unanimidade. Com exceção, é claro, do amor por Nazinha.

Toda essa realidade lúdica da festa foi se construindo ao longo de cada um dos Círios, desde as primeiras mãos amazônidas, de Plácido, a carregarem com amor a Senhora de Nazaré, até as mãos que hoje puxam a corda, as mãos que socorrem, as mãos que distribuem água, enfim, todas as mãos de mulheres e homens do povo, com qualidades e defeitos, que constroem a festa, que construíram os Círios do passado e que seguirão construindo os Círios do futuro, independentes das normas de qualquer instituição

A mudança da Imagem Original para a Imagem Peregrina, enquanto principal símbolo da festa, denota essa metamorfose e a evolução das características do Círio de Nazaré e a construção, ao longo dos anos, deste paradigma agregador que dá o tom às manifestações nazarenas. Antes de ser cultural, antes de ser religioso, o Círio é uma festa amazônida, e o território no qual está inserido se impõe de forma magistral e permeia todos os sentidos presentes na celebração, sendo assim, a partir do momento que uma imagem de Maria com o rosto do povo que a Ela recorre passa a fazer parte da galeria de grandes ícones da festividade, notamos neste ato tão simbólico o óbvio: o Círio só é Círio, porque o povo quer que seja Círio.

Hoje em dia, os traços originais da Imagem Peregrina se perderam após mais de 50 anos sendo utilizada nas procissões e eventos oficiais do Círio e os vários restauros, costumeiramente não divulgados, mas ainda podem ser conferidos em fotografias e cartazes de Círios antigos. Entretanto, o rosto da Maria, mulher amazônica, jamais deixará de ser um dos símbolos mais fortes da potência que há no Pará e na Amazônia. A assimilação e ressignificação de símbolos, realidades e espaços simbólicos promovida pelo Círio de Nazaré são sinais da presença viva da resistência da antiga Mairi, cuja força sobrevive dentro da força de seus filhos, herdeiros da coragem de ter a determinação de seguir a obrigação ancestral de ser feliz.

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