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Fé que une: diferentes caminhos, um só destino no Círio de Nazaré

4–6 minutos

Mesmo vindas de religiões distintas, romeiras como Dandara e Vitória encontram no Círio um espaço de gratidão, respeito e união entre crenças em Belém.

A maior procissão religiosa do mundo acontece em Belém, no norte do Brasil, todo segundo domingo de outubro. Milhões de pessoas tomam as ruas entre devotos, promesseiros, turistas e paraenses que, mesmo não sendo católicos, participam de uma celebração que já faz parte da identidade e da cultura da cidade há mais de dois séculos.

Entre as milhões de pessoas que caminham em direção à Basílica, está Dandara Ferreira, que vive o Círio como uma promessa de gratidão. Em julho de 2018 quase perdeu a vida em um afogamento e, em meio ao desespero, suplicou à Nossa Senhora de Nazaré para ser salva e continuar viva para cuidar da filha que na época tinha dois anos de idade. Desde então, mesmo sendo de uma religião de matriz africana, ela mantém a tradição de caminhar de Ananindeua até a Basílica todos os anos, em sinal de agradecimento.

“Meu terreiro e minha nação é sincretizada, então no sincretismo a nossa senhora é a representação de Oxum. Então dentro da nossa religião é normal a devoção pelos nossos orixás e pelos santos católicos”, afirma a romeira.

Embora o Círio de Nazaré tenha origem religiosa, a presença da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, mesmo para quem não é católico, conecta as pessoas ao momento da cidade, às outras pessoas e reforça o sentimento de pertencimento a um mesmo grupo social. “Na minha visão o Círio, por mais que seja um movimento católico ele reúne todas as religiões e é um dos locais que eu mais vejo a empatia e a tolerância religiosa”, diz Dandara.

Montagem de fotos de Dandara em frente a Basílica de Nazaré. Crédito: Acervo Pessoal.

Vitória Lemos também, apesar de ser de outra religião, faz caminhada até a Basílica da Virgem Maria. A jovem realizou o batismo, a crisma e a comunhão na Igreja Católica, mas hoje se identifica mais com os preceitos da Igreja Messiânica, religião japonesa na qual também foi batizada. Mesmo assim, cresceu vendo a mãe e os irmãos caminhando até a Basílica de Nazaré e, ao completar 18 anos, passou a acompanhá-los.

“A gente poder estar junto (na caminhada) todo ano virou uma tradição. eu nunca fiz uma promessa, o que me motiva é acreditar na força de Nossa Senhora de Nazaré. Eu vou com o sentimento de que todas as pessoas tenham os seus pedidos realizados, que essas pessoas sejam felizes e mudem o destino delas por meio desse movimento de fé”, afirma a jovem.

Todos os anos, Vitória faz o trajeto de Marituba até a Basílica, percorrendo mais de 20 km a pé com a família: “Eu sinto muita gratidão de ‘tá tendo a permissão de estar fazendo isso por mais um ano, de estar com os meus irmãos, de ver as pessoas entregando água e massagem, me sinto muito grata por viver isso”.

Assim como Vitória, Dandara encontra no Círio um espaço de fé e de encontro coletivo. “O Círio pra mim significa união, o ato mais sublime de união e fé. Lá todos somos irmãos e estamos por um só propósito”, pontua.

O Círio derruba muros e aproxima religiões

Segundo uma dissertação de mestrado intitulada “Círio de Nazaré: experiências de sentidos e sociabilidades por meio da cultura material”, de autoria de Gabriel da Mota Ferreira (2022), o Círio é uma manifestação multidimensional que, além da devoção à Nossa Senhora de Nazaré, estabelece laços de solidariedade e pertencimento que abrangem toda a sociedade paraense, configurando-se como um momento de forte integração cultural e social.

O sentimento de coletividade é o que mais marca a experiência, sendo até mais determinante do que a crença em si. Desde 2012, a congregação da Assembleia de Deus realiza ações durante o Círio, que hoje incluem entrega de água aos romeiros, café da manhã, música e a presença da Cruz Vermelha. “Hoje, já servimos cerca de cinco mil (pessoas), sendo o espaço físico o nosso único limitador. Começamos com cem voluntários e hoje contamos com quinhentos”, afirma o pastor Zildomar Campelo, responsável pela ação.

Voluntários servindo alimento aos devotos durante o Círio. Crédito: Divulgação/Assembleia de Deus – Blindados no Senhor

Todos os voluntários passam por capacitação para compreender o real significado do evento. “Todo o processo visa colocá-las em prática no cumprimento do mandamento de Jesus: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Os muros da religiosidade que por muito tempo nos separaram foram derrubados. Jesus nos aproximou, permitindo que nos amássemos uns aos outros. Hoje, entendemos que o verdadeiro evangelho é o amor e que Jesus deve ser a única razão, a verdadeira ‘religião’ do coração”, pontua o pastor.

A convivência entre diferentes religiões durante a festividade representa um dos maiores símbolos da cidade. Belém dá ao mundo uma das mais belas demonstrações de convivência pacífica entre expressões de fé distintas. “É um momento em que todos se unem por uma causa maior: honrar a Deus e servir ao próximo. Essa harmonia transforma a cidade e torna Belém ainda mais conhecida e admirada por sua fé, sua generosidade e seu exemplo de fraternidade”, destaca Campelo.

“Acho que o Círio representa muito mais do que uma religião, é a união das pessoas que estão ao nosso redor, ela reúne as pessoas independente da cor, da raça, do gênero. A gente vê outras igrejas ajudando em prol da felicidade de outra pessoa que está em prece. Eu acho que o Círio é uma representação de que o mundo tem salvação, e que o paraíso terrestre, que nós messiânicos acreditamos, está por vir”, conclui Vitória.

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